Escrevi "Eu e os trilhos" no ano de 2007, em homenagem aos 150 anos de São Carlos. Mas, como se nota abaixo, a homenagem foi mesmo para o meu saudoso avô, um exemplo de desenvoltura. O livro (2008) com esse e outros textos, de diversos autores, está  disponível aqui
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Do armazém à residência de cada freguês, todos os dias. Puxando uma carroça, como era costume na época, ele se esmerava na rotina de entregas. O curto tempo de estudos no “Eugênio Franco” havia ficado para trás. Tudo, aliás, passara muito depressa. Vindo ainda pequeno de Ribeirão Bonito, com os pais, adaptara-se rápido às exigências da vida. O humilde emprego veio já na fase juvenil, e concomitantemente ao serviço foi aprendendo a consertar sapatos. Viria no futuro a fazê-los, e seria essa a sua profissão. São Carlos vivia a década de 1930 e a agitação urbana concentrava-se no atual centro da cidade. A principal avenida, sem o moderno asfalto, ainda era juncada de tocos para a amarra dos cavalos. O bonde belga circulava regularmente, e a presente construção da Catedral estava por vir. Já a Estação Ferroviária funcionava plenamente, e com a mesma fachada do prédio hodierno. Seria ali na Rua Visconde de Inhaúma, anos mais tarde, que ele acabaria por fixar-se com a mulher e os cinco filhos. 


Tentei imaginar os cenários, mirando os trilhos e absorto pelo charme que o antigo evoca. Meu avô vivera num outro mundo. Terei também a oportunidade de deslumbrar os mais jovens, algum dia, narrando este presente que seria então passado? Parece óbvio que sim, mas é difícil imaginar a obsolescência desta contemporaneidade incrível, desta tecnologia que destaca a nossa cidade. Levantei-me sem pressa e caminhei pela antiga Estação, ainda mirando os trilhos. Meu avô cresceu como sapateiro, tornando-se conhecido e respeitado. Menos hoje do que naqueles idos, o nome valia ouro. Fosse pela incipiência populacional ou pela honra ainda existente, a confiança regia o comércio e o crédito era cedido de pronto aos meus tios e à minha mãe. Bastava mencionar a ascendência e os produtos eram entregues amigavelmente, pois era certo o pagamento posterior. Havia uma cumplicidade laboriosa naquela sociedade. Laços de respeito e admiração agregavam os homens de bem ao seio ativo da cidade, e restavam por se confundir à própria estrutura física dela. 


“É sério!” – afirmei em voz alta, como se alguém estivesse duvidando dos meus pensamentos. Mamãe sente mesmo cheiro de trabalho, quando percorre a “General Osório”. Também percebo em seus olhos que as construções preservadas a fitam sorrateiramente, transparecendo fisionomias que lhe marcaram a infância. O barbeiro Chiquinho, o Lauro da quitanda, a Dona Amélia do armazém. Os sons de outrora ecoam já fracos, mas ainda é possível ouvir as modas de viola do bar do Andrezinho. O constante ruído ferroviário, agora raro, também ressoa nesses murmúrios do passado. E, por falar em trens, “como não lembrar dos passeios até a subestação?” – conta ela. Chefe de lá, o vizinho Paulo Brito levava suas netas e outras crianças na locomotiva. As paisagens eram completamente diferentes, e o atual bairro Cruzeiro do Sul resumia-se a mato. Concluí serem essas ligações à cidade a principal origem do seu amor por São Carlos. Um amor iniciado com meu avô e que permeia toda a família. Um amor que ultrapassa a mera tradição, pois aqueles laços ainda se manifestam nos verdadeiros são-carlenses. Sempre será possível mantê-los, adaptando-os às mudanças necessárias e inevitáveis que o progresso traz. 


Eis a questão. Já do outro lado do pátio, sentei novamente, como que para poder refletir melhor. São esses vínculos que devem centralizar as atenções, no sesquicentenário tão festejado. Olvidar os grandes nomes de nossa história jamais, é claro. Mas os milhares de outros nomes também devem ser reconhecidos. “Guerra e Paz”. Lembrei-me de que nesse épico o grande escritor russo Leon Tolstoi destacou a relevância do povo comum. São os indivíduos anônimos, de fibra moral e espiritual, os verdadeiros responsáveis pelo curso da História. Essas “pessoas extraordinárias”, como as chama o historiador Eric Hobsbawm, constituem-se nos verdadeiros heróis. Suas vidas aparentemente medíocres e desprovidas de enredos fantásticos ou carismáticos são sim muito importantes. A espontaneidade e interatividade que as unem constroem o elemento social basilar, sem o qual nada teria sentido. São contribuições que transcendem os livros de História, são histórias que fazem a verdadeira História. É tudo um tanto abstrato, reconheci. Mas não poderia ser diferente, já que é difícil mensurar a influência de experiências tão subjetivas. 


Os trilhos... Lá estava eu a contemplá-los, de novo. Foi então que me recordei do poema “Quem faz a História”, de Bertolt Brecht. Exemplos concretos das minhas elucubrações, burilados pelo grande poeta e dramaturgo alemão. Ele reconheceu que “a grande Roma está cheia de arcos do triunfo”, mas também perguntou sobre “quem os levantou”, e “sobre quem triunfaram os Césares”. Guardadas as devidas proporções, indaguei a respeito de quem teria propiciado a construção do Viaduto IV de Novembro. Fui até o portão e o avistei. Teria sido somente o prefeito da época? Não, definitivamente não. Sem contar os trabalhadores, é preciso lembrar dos moradores retirados do local. Vovô foi um deles. Do sobrado na “Visconde de Inhaúma” restou apenas uma torneira, e os quatro mil cruzeiros compensatórios não foram lá muito satisfatórios. A saída foi o trabalho: uma sandália que virou moda e uma nova casa comprada, no valor de quinze mil. Era uma das primeiras da região a ter azulejo, na cozinha e nos banheiros, ao invés da tradicional barra à óleo. Ressentimentos esquecidos e a situação resolvida, mais trabalho e outras tantas foram adquiridas. 


Retornei ao pátio, orgulhoso de meu avô. Talvez ele não soubesse, mas marcou a história de São Carlos. Nós todos marcamos. Construímos pequenas partes dos trilhos, dia após dia. Elas são aparentemente imperceptíveis mas juntas acabarão por direcionar o desenvolvimento da cidade, que vem apitando em alta velocidade. Minhas partes do trilho ainda não foram todas postas. Encontro-me apenas no início. Já sei, entretanto, em quem devo me inspirar. É só olhar para trás e avistar os trilhos já percorridos. Cento e cinqüenta anos e lá estão as partes construídas por vovô, perfeitamente alinhadas pela honestidade e laboriosidade. Gramíneas do esquecimento tentam ocultá-las, mas eu nunca as esquecerei. Foi assim que deixei a antiga Estação, certo do que significava para mim o sesquicentenário de São Carlos. O sol já se punha, mas consegui mirá-los uma última vez. Sim, os trilhos.